Capital foi projetada para integrar poder, natureza e população, mas ideal não resistiu a protestos de 10 anos atrás. Em maio de 2023, presidente Lula mandou tirar cercas do Planalto.
Por Gustavo Garcia, g1 — Brasília
Das muitas consequências das manifestações de junho de 2013, uma geralmente passa despercebida: a partir daquele período, os palácios dos poderes em Brasília ganharam grades.
Um dos princípios da concepção modernista da capital é a integração entre o poder, a natureza e as pessoas. No Plano Piloto, área central e planejada, os prédios residenciais não são cercados, por exemplo.
“O piso é livre. Apenas o que se projeta acima do solo seria propriedade privada. Então, a ideia era que você pudesse circular livremente pela cidade. Isso, inclusive, no Eixo Monumental. Nos palácios e ministérios, você tem acesso livre até eles, você circula por toda a Esplanada, sem que você tenha áreas cercadas, áreas que impeçam o acesso das pessoas”, explica a arquiteta e urbanista Romina Capparelli.
Esse ideal não resistiu aos protestos de 2013, que muitas vezes terminaram em violência. Em Brasília, houve tentativa de invasão do Congresso e do Palácio do Itamaraty. Manifestantes chegaram a atear fogo à fachada da sede das Relações Exteriores.
Suspeito de colocar fogo no Itamaraty presta depoimento/GNews — Foto: Reprodução/GloboNews
O Palácio do Planalto, então ocupado por Dilma Rousseff, decidiu instalar grades em torno do prédio. A medida seria “temporária”.
“A partir do momento que você cerca áreas, a mensagem que você passa para a população, para as pessoas que vão ali, é que elas não pertencem àquele lugar, que não têm o direito de ter acesso àquele lugar”, prossegue Romina.
À medida que o sentimento antipolítica e antissistema dos protestos de 2013 se espalharam na sociedade, outros palácios se cercaram, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF).
No governo Michel Temer, o acesso à residência oficial do Palácio da Alvorada, tradicionalmente aberto ao público, passou a ter barreiras.
No governo Jair Bolsonaro, a circulação ficou ainda mais restrita.
Em 2016, barreiras foram instaladas na avenida que leva ao Palácio da Alvorada — Foto: Beatriz Pataro/g1
Romina viu nessas ações uma tentativa das autoridades de ficarem “encasteladas”. “Pessoas que se julgam, de certa forma, distantes da população, que têm medo de a população ter acesso ao poder”, afirmou a especialista.
Retirada ainda tímida
Curiosamente, quase 10 anos depois, em maio passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mandou retirar as grades em torno do Planalto.
“É muito simbólico que esse ciclo tenha começado em um governo do PT, [na gestão Dilma Rousseff], e tenha terminado com a volta do PT ao poder”, avaliou o cientista político Leonardo Barreto.
O especialista vê indícios de uma retomada da normalidade do processo político no país.
“De certa maneira, isso significa a política retornando para o seu leito. Depois de esparramar, depois da grande enchente e toda a destruição que ela trouxe, o rio voltou para o seu leito. Há um processo, sim, de normalização do processo político, mesmo que seja em termos que ainda estão sendo negociados”, completou.
Apesar de Lula, ao tomar a decisão, ter dito que a “democracia não suporta grades”, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República já afirmou que, se preciso, elas voltarão.
O Congresso continua recorrendo às grades, e o Supremo, que foi atacado com fogos de artifício por bolsonaristas em 2020, mantém as cercas.
“[Os ministros do STF] passaram por um trauma muito grande, que nunca tinham vivido. E, de certa maneira, não percebem que essa ameaça tenha passado. Eles vão trabalhar para garantir condições para que alguns atores do jogo, que ameaçaram jogar fora das regras, sejam extirpados. Enquanto isso não acontecer e não estiver pacificado, eu acho que o Supremo não descansa”, continua Barreto.
A arquiteta Romina Cappareli comemorou o início da retirada das grades, mesmo que o processo esteja tímido.
“Quando você tira as grades, ainda que para ingressar naquele prédio tenha que se identificar, a pessoa não se sente intimidada de acessar aquele local. Ela se sente bem-vinda. Então, é importantíssima a retirada de todas as grades para as pessoas voltarem a sentir que aquela é uma área em que são desejadas, em que a circulação delas é livre”, pontuou.
8 de janeiro
As cercas não conseguiram impedir que radicais golpistas invadissem e depredassem as sedes dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo no dia 8 de janeiro.
Obras de arte, móveis, vidros, computadores, peças de tapeçaria e outros itens foram destruídos pelos vândalos.
As grades foram derrubadas com facilidade e, inclusive, utilizadas pelos bolsonaristas como escadas e armas para depredar o patrimônio público.
“Chamou a atenção no dia 8 de janeiro que as pessoas não sabiam nem mesmo o que invadir, porque elas não sabiam diferenciar o Palácio do Planalto, o Congresso, do STF, elas simplesmente diziam: ‘Ah, é uma rampa'”, refletiu Romina.
“O nível de alienação das pessoas, de afastamento, de desconhecimento… As pessoas não conhecem os seus símbolos nacionais, não sabem quais são os símbolos do próprio país que dizem defender”, concluiu a especialista.
O STF julga mais de mil denúncias contra pessoas envolvidas nos atos golpistas de 8 de janeiro. No Congresso, uma CPI tem como principal meta identificar quem financiou os vândalos. A Polícia Federal, subordinada ao Ministério da Justiça, ainda investiga os autores dos atos.